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A arte no banco dos réus: moral e política ditam a censura judicial no Brasil

14 de fevereiro de 2024

Gabriel Almeida

A liberdade de expressão artística é direito que necessita de constante reafirmação. Mesmo em um regime democrático, são inúmeras as formas que a censura pode assumir, dificultando a livre expressão do pensamento e cerceando, por tabela, a liberdade de criar novas formas de arte ou de utilizá-la para manifestação crítica.

Em um passado não tão antigo, em 2017, dois episódios marcaram a discussão sobre a criminalização de manifestações artísticas no Brasil. O Queermuseu, exposição de arte que acontecia no Santander Cultural, em Porto Alegre, foi cancelado após acusações de vilipêndio público a objeto de culto religioso e apologia à prática de zoofilia e pedofilia. Alguns dias depois, um vídeo de performance do artista Wagner Schwartz, no Museu de Arte Moderna (MAM) de São Paulo, foi alvo de investigação policial por pornografia infantil, porque mostrava uma criança tocando o pé do artista, que se apresentava nu. Pela reconhecida inexistência de crime nessas situações, nenhuma delas chegou a se tornar uma ação penal, apesar da repercussão que tiveram e das manifestações verbais exaltadas que se seguiram por todo o país.

A dimensão alcançada pelos acontecimentos foi tamanha que o Ministério Público Federal lançou, meses depois, a didática Nota Técnica n.º 11/2017/PFDC/MPF, em que, sem ignorar a proteção que se deve dispensar a crianças e adolescentes, construiu uma sólida base para entender o que pode ou não ser considerado crime numa manifestação artística. Entre outros pontos de relevância, a Nota Técnica defendia que, “em princípio, todas as formas não-violentas de manifestação estão inseridas no âmbito de proteção da liberdade”, abrangendo inclusive “manifestações ‘desagradáveis, atrevidas, insuportáveis, chocantes, audaciosas ou impopulares’ (STF, ADPF 187/DF)”. Acertadamente, apenas não estariam protegidas pela liberdade constitucional “manifestações de caráter racista ou de ódio”.

Alguns anos após as repercussões do Queermuseu e do MAM, todavia, esses pressupostos parecem estar longe de alcançar algum consenso no Brasil, ou mesmo no mundo.

De fato, um dos exemplos que a Nota Técnica trazia como de notória ausência de crime em manifestação artística era a famosa capa do álbum Nevermind da banda norte-americana Nirvana. Não obstante o material mostrasse um bebê nu, a nota defendia (com razão) ser evidente ali a completa inexistência de intenção lasciva, de modo a descaracterizar a ocorrência de crime sexual. No entanto, ironicamente, em 2021, o homem retratado naquela fotografia, hoje com mais de 30 anos, processou a banda nos Estados Unidos pelo uso supostamente indevido de sua imagem, promovendo, segundo ele, pornografia infantil. O caso acabou sendo arquivado sem análise de mérito devido a questões processuais.

No Brasil, o site Observatório de Censura à Arte mostra que o cenário não é muito diferente com relação às inseguranças que cercam a liberdade de expressão. Desde 2017, o projeto tem feito levantamento em tempo real das manifestações artísticas que sofrem alguma forma de represália no país e já conta com registro de quase cem novos casos.

É certo que a maior dificuldade quando se fala na proteção às manifestações artísticas é a definição do próprio conceito de arte. Longe de se restringir a representações clássicas — como a pintura, a dança ou o cinema —, a arte, principalmente no pós-modernismo, deve ser vista como um conceito aberto, que abarca manifestações inusitadas e até mesmo descompromissadas com padrões do que se deve considerar erudito ou original.

O próprio conceito de vanguarda, que se coloca no papel de expandir cada vez mais as fronteiras da arte, impede-nos de ter uma visão hermética sobre o assunto, sob o abominável risco de se censurar algo que hoje seria impopular ou incompreendido, mas que futuramente pode vir a se tornar uma obra clássica. O maior exemplo disso é o quadro “A origem do mundo”, de Gustave Courbet, que retrata uma mulher nua deitada em enquadramento pouco usual para a época, mostrando o corpo sem qualquer filtro e de maneira explícita. Apesar de a obra se encontrar hoje no Museu de Orsay, em Paris, foi considerada “repugnante” e “escatológica” quando de sua primeira exposição, em razão da forma como a nudez era entendida à época.

Por motivos como esse, é preciso se cercar de diversas cautelas antes de tentar restringir a arte em nome de um conceito de moral que varia de tempos em tempos. A elucidativa Nota Técnica do Ministério Público Federal apontou que o próprio Supremo Tribunal Federal, ao julgar a possibilidade de publicação de biografias não autorizadas (ADI 4815/DF), estabeleceu que as medidas restritivas da liberdade de expressão, em qualquer seara do direito, devem ser vistas com suspeição, exigindo um ônus argumentativo particularmente elevado para justificá-las.

Assim, ao se analisar uma obra de arte à luz do direito — e principalmente no âmbito criminal —, há de se ter em conta o sentido da manifestação, que nem sempre coincide com a reação do público a ela. Para tanto, a obra deve ser levada em consideração em sua íntegra, com todas as circunstâncias que a cercam.

Foi com base nesse entendimento que o Supremo Tribunal Federal, em 2005, afastou a existência do crime de ato obsceno em peça de teatro na qual o autor, em reação às vaias da plateia ao final do espetáculo, simulava ato de masturbação no palco e exibia as nádegas ao público (HC 83.996/RJ). No caso, ficou consignado que a cena não deveria ser analisada isoladamente e que, mesmo se admitindo que alguns gestos possam eventualmente ofender o pudor quando feitos em praça pública, eles são plenamente aceitáveis dentro de um teatro destinado a pessoas adultas.

Também em um recentíssimo caso, a obra fuck abstration! da artista suíça Miriam Cahn, exposta no Palais de Tokyo, em Paris, foi parar na justiça sob acusações de pornografia infantil, por retratar de forma semiabstrata o que parece ser uma pessoa de traços franzinos, com as mãos amarradas, sendo compelida a praticar sexo oral num adulto de traços fortes, mas sem rosto. Em decisão do tribunal administrativo de Paris, entendeu-se que o quadro não poderia ser analisado fora de seu contexto, pois a artista visava denunciar os horrores da guerra, mais especificamente como a sexualidade foi utilizada como arma nos abusos cometidos durante a invasão russa na cidade de Bucha, na Ucrânia. Portanto, seu direito de se expressar livremente deveria prevalecer.

Todos esses critérios e formas de interpretação, por mais importantes que sejam, não conseguem, todavia, proteger as obras de arte de “censuras extrajudiciais” guiadas pela moral ou por convicções políticas. A decisão do tribunal parisiense acima citada, por exemplo, não impediu que, dias depois, o quadro fosse vandalizado por um cidadão descontente com a representação. Tampouco poderia ela, eventualmente, impedir manifestações agressivas contra a própria artista, como as que já ocorreram em outras situações, como a do MAM e do Queermuseu, no Brasil.

O problema da censura às artes é muito mais complexo e demanda não só uma interpretação coerente dos tribunais, como também o combate às formas cotidianas de impedimento de manifestação. Numa democracia, os excessos dos discursos devem ser combatidos com mais discurso, de modo a propiciar um ambiente favorável a novas ideias e livre de qualquer tipo de censura, sem agressões que extrapolem a esfera do debate ou generalizações preconceituosas que acabem por impedi-lo.

 

 

* Publicado pelo JOTA em 5.11.2023.