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14 de abril de 2022
Um ano se passou desde a entrada em vigor da Lei nº 14.133/21, que alterou o Código Penal para incluir os artigos 337-E a 337-O no capítulo “Dos crimes em licitações e contratos administrativos“, substituindo as infrações penais anteriormente previstas na Lei nº 8.666/93.
Apesar do pouco tempo transcorrido desde a entrada em vigor da nova lei [1], a jurisprudência já teve oportunidade de interpretar algumas alterações.
Alegação comum [2] que vem se observando tanto nos casos envolvendo o crime do artigo 337-E como os do artigo 337-L, do Código Penal, que punem a contratação direta ilegal e a fraude em licitação ou contrato, é a de que teria havido abolitio criminis com a revogação dos artigos 89 e 96 da Lei nº 8.666/93. De forma geral, entretanto, as cortes vêm entendendo que não se configura a descriminalização nesses casos, porque, embora a “Lei nº 14.133/2021 (Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos) [tenha revogado] os crimes previstos na Lei nº 8.666/1993” [3], transferiu, “todavia, para o Código Penal, a disciplina referente aos crimes cometidos nos processos licitatórios e nos contratos administrativos deles decorrentes” [4], o que constitui “aquilo que se denomina de continuidade normativo-típica” [5], preservando, portanto, a natureza ilícita da conduta proibida.
Não obstante a maioria das decisões analisadas caminhe nesse sentido, precedente recente do Tribunal Regional Federal da 3a Região entendeu haver descriminalização da segunda parte do antigo artigo 89, da Lei nº 8.666/93, que tipificava a conduta de “dispensar ou inexigir licitação fora das hipóteses previstas em lei, ou deixar de observar as formalidades pertinentes à dispensa ou à inexigibilidade”, alcançando, em tese, o comportamento menos gravoso daquele que deixa, por exemplo, de instruir corretamente o processo que levou à dispensa ou à inexigibilidade. Já o artigo 337-E do Código Penal, que o substituiu, disciplina ser crime apenas “admitir, possibilitar ou dar causa à contratação direta fora das hipóteses previstas em lei”. Segundo entendeu o tribunal no precedente citado, ao reproduzir “apenas parcialmente a redação do art. 89, ‘caput’ da Lei nº 8.666/93”, o legislador “não inseriu a segunda parte do preceito primário do artigo revogado no art. 337-E, do Código Penal, o que caracteriza, portanto, ‘abolitio criminis’ da conduta pela qual o apelante foi denunciado” [6], no caso, autorizar contratação de empresa para manutenção de veículos da frota municipal sem prévia cotação de preços junto a três outras empresas do ramo. Apontando, assim, a retroatividade da lei penal mais benéfica, o tribunal reconheceu a extinção da punibilidade do apelante, em precedente que deve servir de referência para hipóteses análogas.
Ainda com relação ao artigo 337-E, do Código Penal, a jurisprudência parece vir mantendo o entendimento pacificado pelo Superior Tribunal de Justiça [7] acerca do artigo 89 da Lei nº 8.666/93, segundo o qual, “para a configuração do delito […], é indispensável a comprovação do dolo específico do agente em causar dano ao erário, bem como do prejuízo à administração pública” [8].
Resta ainda saber como os tribunais se pronunciarão sobre temas como o novo (e controvertido) tipo de “Omissão grave de dado ou de informação por projetista” [9] e o crime de “Frustração do caráter competitivo de licitação” [10], agora punido com penas superiores àquelas previstas para o tipo de cartel [11], que, em situações envolvendo ajustes mais duradouros, poderá absorver o crime licitatório. Neste último caso, algumas decisões [12] vêm afastando alegações de abolitio criminis com base no entendimento de que houve “migração do conteúdo típico para a novel figura capitulada no artigo 337-F do [Código Penal]” [13].
Outro ponto que ainda merece reflexão é a constitucionalidade das penas estabelecidas pela Lei nº 14.133/21, que em muitos casos [14] ultrapassam as que foram previstas para os demais crimes contra a Administração Pública e chegam a ser mais gravosas que as do crime de corrupção [15], na medida em que a pena mínima de 4 anos de reclusão em algumas figuras típicas [16] impede a celebração do acordo de não persecução introduzido pela Lei nº 13.964/19 [17]. O simples comportamento de pagar fatura “com preterição da ordem cronológica de sua exigibilidade” [18], por exemplo, que possui relevância penal bastante duvidosa, é hoje punido com a elevadíssima pena de quatro a oito anos de reclusão.
Essas sanções poderão ser revistas caso a jurisprudência adote entendimento definido pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento de recurso que discutia a pena do crime de importação de medicamento sem registro, aumentado de forma desproporcional no contexto do escândalo das pílulas de farinha. Naquele julgamento, o Tribunal restabeleceu a pena anteriormente prevista e reconheceu que cabe ao Poder Judiciário intervir “em casos de gritante desproporcionalidade“, para “garantir uma sistematicidade mínima do direito penal, de modo que não existam (i) penas exageradamente graves para infrações menos relevantes, quando comparadas com outras claramente mais reprováveis, ou (ii) a previsão da aplicação da mesma pena para infrações com graus de lesividade evidentemente diversos” [19].
Muitos pontos, enfim, merecem ainda reflexão, e o pouco tempo de vigência da nova lei justifica a ausência de discussões sobre alguns dos temas apontados. Os precedentes aqui colacionados, de todo modo, indicam um norte dos prováveis assuntos que ocuparão o debate doutrinário e jurisprudencial nos próximos anos.
[1] Muito embora os dispositivos penais estejam válidos desde a publicação da lei, boa parte da Lei nº 14.133/21 só entrará em vigor passados dois anos de sua publicação oficial. Conforme artigo 193, “revogam-se: I — os artigos 89 a 108 da Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993, na data de publicação desta Lei; II — a Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993, a Lei nº 10.520, de 17 de julho de 2002, e os artigos 1º a 47-A da Lei nº 12.462, de 4 de agosto de 2011, após decorridos 2 (dois) anos da publicação oficial desta Lei”.
[2] Vejam-se: TJ-SP, Apelação Criminal nº 0015622-60.2012.8.26.0597, relator desembargador FARTO SALLES, 6ª Câmara de Direito Criminal, DJe 11/2/2022; TJ-SP, Apelação Criminal nº 0000752-96.2021.8.26.0531, relator desembargador SÉRGIO COELHO, 9ª Câmara de Direito Criminal, DJe 29/11/2021; TJTO, Apelação Criminal nº 0008904-89.2017.8.27.0000, relator desembargador PEDRO NELSON DE MIRANDA COUTINHO, Turmas das Câmaras Criminais, DJe 1/9/2021; STJ, AgRg no HC nº 669.347/SP, rel. ministro JESUÍNO RISSATO (desembargador convocado do TJDFT), rel. para acórdão ministro JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, 5ª Turma, DJe 14/2/2022.
[3] TJ-SP, Apelação Criminal nº 0000752-96.2021.8.26.0531, relator desembargador SÉRGIO COELHO, 9ª Câmara de Direito Criminal, DJe 29/11/2021.
[4] Idem.
[5] TJ-TO, Apelação Criminal nº 0008904-89.2017.8.27.0000, relator desembargador PEDRO NELSON DE MIRANDA COUTINHO, Turmas das Câmaras Criminais, DJe 1/9/2021.
[6] TRF 3ª Região, Apelação Criminal nº 0000886-02.2013.4.03.6118, rel. desembargador Federal JOSÉ MARCOS LUNARDELLI, DJe 5/10/2021.
[7] O tema foi objeto da Edição nº 134 da Jurisprudência em Teses do STJ, que citou como precedentes para a tese os seguintes julgados: RHC 108.813/SP, rel. ministro SEBASTIÃO REIS JÚNIOR, 6ª Turma, julgado em 5/9/2019, DJe 17/9/2019; AgRg no AREsp 1.426.799/SP, rel. ministra LAURITA VAZ, 6ª Turma, julgado em 27/8/2019, DJe 12/9/2019; HC 490.195/PB, rel. ministro JOEL ILAN PACIORNIK, 5ª Turma, julgado em 3/9/2019, DJe 10/9/2019; RHC 115.457/SP, rel. ministro JORGE MUSSI, 5ª Turma, julgado em 20/8/2019, DJe 2/9/2019; AgRg no RHC 108.658/MG, rel. ministro NEFI CORDEIRO, 6ª Turma, julgado em 13/8/2019, DJe 22/8/2019; HC 444.024/PR, rel. ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ, 6ª Turma, julgado em 2/4/2019, DJe 2/8/2019; HC 498.748/RS, rel. ministro FELIX FISCHER, 5ª Turma, julgado em 30/5/2019, DJe 6/6/2019.
[8] STJ, Edição nº 134 da Jurisprudência em teses. Disponível em: https://scon.stj.jus.br/SCON/jt/toc.jsp. Acesso em 29/3/2022.
[9] Artigo 337-O do Código Penal.
[10] Artigo 337-F do Código Penal.
[11] I.e., dois a cinco anos de reclusão e multa, conforme artigo 4º da Lei nº 8.137/90.
[12] TJ-SP, Habeas Corpus Criminal nº 0043988-42.2021.8.26.0000, relator des. MARCOS ALEXANDRE COELHO ZILLI, 16ª Câmara de Direito Criminal, DJe 16/2/2022; TJ-SP, Habeas Corpus nº 0000027-17.2022.8.26.0000, relator des. MARCOS ALEXANDRE COELHO ZILLI, 16ª Câmara de Direito Criminal, DJe 18/3/2022; TJ-SP, Apelação Criminal nº 0000633-66.2016.8.26.0352, relator des. GILBERTO FERREIRA DA CRUZ, 3ª Câmara de Direito Criminal, DJe 27/4/2021.
[13] TJ-SP, Apelação Criminal nº 0004608-50.2013.8.26.0466; relator des. CAMARGO ARANHA FILHO, 16ª Câmara de Direito Criminal, DJe 23/7/2021.
[14] Dos onze tipos penais previstos no capítulo de crimes licitatórios, quatro são agora punidos com reclusão de quatro a oito anos.
[15] Punido com reclusão de dois a 12 anos.
[16] Isso ocorre nos crimes de contratação direta ilegal, frustração do caráter competitivo da licitação, modificação ou pagamento irregular em contrato administrativo e fraude em licitação ou contrato.
[17] Previsto no artigo 28-A do Código de Processo Penal para infrações “sem violência ou grave ameaça e com pena mínima inferior a 4 (quatro) anos”, mediante determinadas condições.
[18] Artigo 337-H do Código Penal.
[19] STF, RE 979.962, Plenário, rel. min. ROBERTO BARROSO, DJe 14/6/2021.
*Publicado pelo ConJur em 1º.4.2022.