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Crimes e segregação patrimonial envolvendo ativos virtuais

14 de fevereiro de 2024

Natasha do Lago , Isac Costa

No último dia 3 de outubro, a CSP (Comissão de Segurança Pública) do Senado aprovou alterações ao Projeto de Lei do Senado nº 3.706/2021 para, entre outros aspectos relevantes, reintroduzir a regra de segregação patrimonial para prestadoras de serviços de ativos virtuais que acabou não entrando na Lei nº 14.478/2022.

Opositores da ideia alegam que a exigência da segregação patrimonial em nível legal impactaria negativamente o mercado de serviços de ativos virtuais, engessando modelos de negócio de maior risco e representando uma ingerência indevida na liberdade econômica. Além disso, seria desnecessária, pois poderia ser incluída posteriormente em norma do Banco Central.

À luz dos fatos observados nos últimos anos, esses argumentos não podem prosperar.

Primeiramente, a previsão da segregação patrimonial em nível legal traz uma segurança muito maior para os consumidores de serviços financeiros, tal como fez a Lei nº 10.214/2001 em seu artigo 6º, orientando o Poder Judiciário a respeitar o patrimônio separado para fins de execução e regimes de insolvência. Além disso, a previsão harmonizaria o tratamento de prestadores de serviços de ativos virtuais e instituições de pagamento, regidas pela Lei número 12.865/2013, em respeito à imposição de restrições ao que pode ser feito com os recursos depositados pelos seus clientes.

Em segundo lugar, embora a maior liberdade econômica propicie a maior tomada de risco pelos prestadores de serviços de ativos virtuais, os colapsos de Celsius, Three Arrows Capital e FTX sinalizam que essas empresas não podem atuar como se fossem bancos, alavancando-se com os recursos de seus clientes sem nenhuma restrição. Uma corrida de saques é um risco real e à altura da limitação à liberdade econômica imposta pela segregação patrimonial.

Do ponto de vista do direito penal, a Lei nº 14.478/22 já equiparou as prestadoras de serviços de ativos virtuais a instituições financeiras, atraindo para aquelas todo o arcabouço da lei que define os crimes contra o sistema financeiro nacional, como a gestão temerária e a operação não autorizada de instituição financeira. Ampliar essa proteção, por meio da introdução de regra que visa proteger quem se utiliza dos serviços de ativos virtuais, é medida que se antecipa à lógica punitiva do direito penal e gera proteção mais eficiente.

Ainda assim, e apesar de a alteração proposta pela CSP ser bem-vinda, seria oportuno especificar de forma mais clara o alcance da regra de segregação enquanto diretriz. Na redação aprovada, foi proposta a inserção de princípio estabelecendo a “segregação patrimonial dos ativos virtuais de titularidade própria daqueles detidos por conta e ordem de terceiros”, deixando de fora a segregação de recursos de outra natureza.

Proposta mais completa e alinhada com o objetivo da alteração seria estipular como princípio, em lugar do atual artigo 9º do substitutivo, o “controle e manutenção, de forma individualizada e segregada, dos recursos aportados pelos clientes e dos ativos, inclusive virtuais, em que venham a ser transformados”.

Outra inclusão relevante seria resgatar, com alterações pontuais, o conteúdo do artigo 13 do PL 4.401/2021, que resultou na Lei nº 14.478/2022, para detalhar o escopo da segregação e especificar suas consequências práticas:

“Art. 13. […]
§ 1º As prestadoras de serviços de ativos virtuais deverão manter a segregação patrimonial dos recursos financeiros, ativos virtuais e respectivos lastros de titularidade própria daqueles detidos por conta e ordem de terceiros ou recebidos de clientes para aplicação e/ou conversão;
§ 2º Os recursos financeiros, ativos virtuais e respectivos lastros detidos por conta e ordem de terceiros ou recebidos de clientes para aplicação e/ou conversão não respondem, direta ou indiretamente, por nenhuma obrigação das pessoas jurídicas mencionadas no § 1º e não podem ser objeto de arresto, sequestro, busca e apreensão ou qualquer outro ato de constrição judicial em função de débitos de responsabilidade destas últimas.
§ 3º Os recursos financeiros, ativos virtuais e respectivos lastros detidos por conta e ordem de terceiros ou recebidos de clientes para aplicação e/ou conversão não integrarão o patrimônio das pessoas jurídicas mencionadas no § 1º e:
I – não podem ser dados em garantia de obrigações assumidas por elas;
II – não compõem o ativo das prestadoras de serviços de ativos virtuais e não se sujeitam à arrecadação nos regimes especiais das instituições autorizadas a funcionar pelo Banco Central do Brasil, à recuperação judicial e extrajudicial, à falência, à liquidação judicial e extrajudicial ou a qualquer outro regime de recuperação ou dissolução a que sejam submetidas; e
III – deverão ser restituídos na hipótese de decretação de falência, ou qualquer regime de concurso de credores, na forma prevista no art. 85 da Lei nº 11.101, de 9 fevereiro de 2005.”

Essa inserção traria maior segurança jurídica na medida em que afastaria expressamente, por exemplo, a possibilidade de constrição de recursos dos clientes da prestadora de serviços de ativos virtuais em medidas decretadas contra ela. E também impediria a utilização dos recursos e ativos virtuais como garantia de obrigações que viesse a assumir.

Fica em aberto como a CCJ irá se posicionar sobre o tema e como o Banco Central irá levar em consideração o retorno desta previsão em um projeto de lei ainda em tramitação, após ter anunciado que a consulta pública para a regulação infralegal teria início ainda em 2023.

 

 

*Publicado pelo Conjur em 23.10.2023.