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Crimes falimentares no contexto da pandemia
Tarsila Tojal , Ana Fernanda Ayres Dellosso, Nara Chavedar

Nestes tempos de pandemia, para além das urgentes e irrenunciáveis medidas em prol da saúde pública, é inevitável constatar a recessão que acompanha a disseminação do vírus e, entre seus tantos efeitos, o estado de insolvência que atinge as empresas.

Segundo levantamento do Sebrae, ao menos 600 mil micro e pequenas empresas já fecharam suas portas. Além disso, de acordo com a quinta edição de pesquisa feita recentemente em conjunto com a FGV, desde o início da crise, 46% dos pequenos negócios buscaram empréstimos em bancos, muitos sem sucesso.

Em paralelo, de acordo com monitoramento de gastos da União, divulgado pela plataforma do Tesouro Nacional Transparente, até o início de agosto, R$ 20,9 bilhões haviam sido injetados pelo governo federal em políticas emergenciais a empresas de pequeno e médio porte (Medidas Provisórias 972 e 977). O valor é consideravelmente menor do que o originalmente previsto, que já se mostrava tímido quando comparado com outros países – por exemplo, o plano emergencial que está sendo implementado nos Estados Unidos (Paycheck Protection Program).

A crise gera insolvência e a insolvência agrava a crise. Desse espiral, já se nota acréscimo significativo no número de pedidos de recuperação judicial, extrajudicial e falência que devem acompanhar a pandemia. Levantamento da Boa Vista SCPC divulgado no mês passado, indica que, no período de maio a junho deste ano, o número de falências decretadas cresceu 93%, e o de pedidos de recuperação judicial 82,2%.

Por isso é importante falar dos crimes falimentares – previstos na Lei 11.101/2005 – e separar as obrigações a que se sujeita a empresa devedora dos responsáveis por eventuais crimes cometidos nesse contexto.

Nem todo delito previsto na Lei 11.101/2005 precisa ser praticado por integrantes da empresa devedora. Por vezes, por exemplo, o agente do crime será um de seus credores, uma autoridade pública ou um contador. Essa opção legislativa não é por acaso. O escopo da lei é proteger a atividade empresarial, no sentido de “viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor” (art. 47) e, quando isso não for possível, de ao menos “preservar e otimizar a utilização produtiva dos bens, ativos e recursos produtivos, inclusive os intangíveis, da empresa” (art. 75). Afinal, a posição de credores e devedores será sempre transitória, enquanto a atividade empresarial, perene. A lei não se coloca à disposição de pontuais interesses arrecadatórios, nem de expectativas econômico-financeiras dos credores ou devedores.

Vale lembrar, ainda, que a responsabilidade penal será sempre subjetiva e recairá sobre pessoas físicas que efetivamente participarem do delito, na medida de sua culpabilidade. O direito penal não admite a presunção de culpa, devendo ser afastadas interpretações nesse sentido.

Uma particularidade dos crimes da Lei 11.101/05 é que a conduta, independentemente se praticada em contexto pré ou pós-falimentar, só pode ser punida se existir “sentença que decreta a falência, concede a recuperação judicial ou concede a recuperação extrajudicial”. Simples dificuldades financeiras, portanto, serão insuficientes para que esses crimes existam.

Cabe também ao órgão de acusação demonstrar que todos os elementos do delito foram praticados pelo acusado, com consciência e vontade. Em muitos casos, além da vontade de praticar a conduta, deve ser constatada uma finalidade específica. Por exemplo, não comete crime falimentar aquele que divulga informação falsa sobre devedor em recuperação judicial se não houver o objetivo específico de “levá-lo à falência ou de obter vantagem”.

Outra indagação que pode surgir é se as graves dificuldades financeiras enfrentadas por uma empresa poderiam justificar a conduta do empresário e, assim, impedir a configuração de um crime falimentar.

Argumentos nessa linha já foram aceitos por tribunais em casos excepcionais de sonegação fiscal, por exemplo, quando comprovado que o recolhimento de impostos teria conduzido ao não pagamento de funcionários.

Contudo, com relação aos crimes da Lei 11.101/05, a resposta parece ser negativa para a maioria das situações, pois a dificuldade financeira é um pressuposto de quase todas as infrações falimentares e já existe uma ordem legal para adimplemento de dívidas no contexto de crise.

De toda forma, por ora, a aplicação do direito penal não trará soluções, nem evitará o agravamento de situações de falência ou recuperação judicial.

Medidas em outras esferas, por outro lado, podem apresentar soluções mais adequadas. Nesse sentido, o Projeto de Lei 1.397/20 propõe uma adequação transitória do regime de falência e recuperação enquanto perdurar o estado de calamidade pública, por diversos meios, como a suspensão de ações de execução e a possibilidade de negociação preventiva para o devedor que tiver redução de mais de 30% de seu faturamento.

Apesar de algumas ressalvas quanto à aplicação prática, a ideia do Projeto é dar ao empresário instrumentos para melhor gerir a crise antes que ela se torne um caminho sem volta, antecipando-se também à eventual prática de crimes.

 

* Publicado pelo Valor Econômico em 12.8.2020.