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04 de julho de 2024
Ganhou espaço a discussão na Câmara dos Deputados sobre a possibilidade de limitar acordos de colaboração premiada a pessoas que estejam em liberdade. Embora a discussão remonte já há alguns anos, o tema será agora decidido em regime de urgência, conforme requerimento aprovado no último dia 12 de junho.
A proposta parte de dois projetos de lei. O primeiro – PL 4372/2016 – foi apresentado pelo então deputado Wadih Damous (PT-RJ), enquanto o segundo – PL 4699/2023 – foi protocolado pelo deputado Luciano Amaral (PV-AL), tendo sido apensado ao primeiro por tratar do mesmo tema.
O PL 4372/2016 propõe a inserção de dispositivo na lei que trata da colaboração premiada estabelecendo, entre outros aspectos, que o acordo só será homologado se o acusado ou indiciado estiver respondendo a processo em liberdade.
Já o PL 4699/2023, em vez de vedar a colaboração premiada daquele que se encontre preso, estipula a presunção de ausência de voluntariedade da colaboração premiada realizada com pessoa submetida a “privação cautelar da liberdade”.
De um lado, a presunção legal reforça a ideia de que existiria uma relação de causa e efeito entre a privação cautelar de liberdade e a ausência de voluntariedade para a colaboração premiada. Parte-se da premissa de que, se o delator se encontra cautelarmente preso, sua vontade estaria presumivelmente viciada.
De outro, a presunção legal nesse caso impõe ao delator o ônus de provar que, apesar de se encontrar preso, declarou sua vontade de colaborar de maneira livre, consciente e desimpedida. Tem-se, aqui, a dificuldade natural de provar um estado psicológico pretérito, aliada a uma particularidade ainda pior: provar a higidez psicológica pode, nesse caso, envolver a demonstração dos chamados fatos negativos (ou seja, de que não houve influências externas para a colaboração, de que a prisão não foi a causa da intenção de colaborar), o que é frequentemente considerado uma “prova diabólica”, aquela impossível de ser produzida.
Além disso, o PL 4699 traz uma previsão importante de que “os terceiros implicados poderão impugnar o acordo de colaboração premiada e a decisão homologatória”, o que não vem sendo admitido pela jurisprudência e pode trazer consequências importantes.
A primeira discussão que surge com base nessas propostas é se a prisão vicia a vontade do colaborador, a ponto de impedir que o acordo seja realizado de forma voluntária. Atualmente, a lei estabelece que o juiz deve verificar a voluntariedade do acordo para que ele seja homologado, “especialmente nos casos em que o colaborador está ou esteve sob efeito de medidas cautelares”.
Sendo a colaboração premiada legalmente reconhecida como um negócio jurídico processual, eventual vício na vontade do colaborador poderá levar à sua anulação. É o que ocorre, por exemplo, se a colaboração premiada for motivada por estado de perigo ou coação.
Ocorre que, em ambos os casos, o negócio jurídico não pode ser anulado, de uma perspectiva de direito civil, se o dano iminente em questão (no caso específico, o risco de prisão de uma persecução penal seguida de condenação ou mesmo a manutenção de medida cautelar) for considerado justo.
Por isso é que, especificamente no que se refere à coação, o Código Civil prevê que “não se considera coação a ameaça do exercício normal de um direito”. É o que ocorre se a prisão for decretada dentro das condições estabelecidas por lei. Uma prisão cautelar decretada para pressionar o investigado ou acusado a realizar acordo, sem que exista “perigo gerado pelo estado de liberdade do imputado”, não estará inserida nessa regra e poderá constituir coação, mas uma prisão realizada conforme os requisitos legais não gerará, por si só, vício de vontade capaz de invalidar o acordo.
Outra questão é se, uma vez aprovada, a proposta de restringir a colaboração premiada a pessoas em liberdade poderia retroagir em benefício de quem fez o acordo quando estava preso, ou mesmo de pessoas delatadas nessas circunstâncias.
Como a alteração trata de instrumento para obtenção de prova, ela possui natureza processual, e a regra é que a lei passará a produzir seus efeitos somente a partir do momento em que entrar em vigor.
O problema é que, mesmo não retroagindo automaticamente, os PLs colocam em questão a voluntariedade de colaborações realizadas com investigados ou acusados presos, requisito já necessário para homologação judicial. Uma lei que reconheça a ausência de voluntariedade de acordo nessas circunstâncias abre margem para discutir colaborações anteriores sob esse viés, sem que seja necessário recorrer à retroatividade da nova regra.
E é nesse ponto que ganha importância a segunda mudança proposta pelo PL 4699. Em sua redação atual, o projeto autoriza os “terceiros implicados” a “impugnar o acordo de colaboração premiada e a decisão homologatória”, o que é ainda bastante controvertido na jurisprudência. Como o Código de Processo Penal entende como ilícitas as provas “obtidas em violação a normas constitucionais ou legais”, um acordo de colaboração viciado poderia gerar questionamentos pelo fato de relatos potencialmente incriminatórios derivarem de prova não admitida.
O PL 4699 não esclarece qual seria o conteúdo da “impugnação” cuja legitimidade é atribuída aos “terceiros implicados”, não estabelecendo se isso permitiria aos delatados apenas questionar as informações trazidas na colaboração premiada ou, ainda, se poderiam arguir causas de eventual nulidade na sua obtenção ou homologação (p. ex., se a colaboração premiada foi obtida ou homologada perante órgão jurisdicional absolutamente incompetente), o que já deveria ser permitido para todo e qualquer implicado, não havendo necessidade de previsão legal nesse sentido; ou se, além disso, o projeto autoriza que os implicados possam questionar a validade da colaboração sob o argumento de que ela teria sido obtida mediante vícios do consentimento, como o estado de perigo ou a coação.
Caso seja este último o sentido da legitimidade para “impugnar” que o projeto atribui aos implicados, o PL criaria um cenário peculiar para a colaboração premiada dentre os demais negócios jurídicos (mesmo os processuais), já que, como os vícios do consentimento tornam o negócio viciado apenas anulável, a regra é que somente as próprias vítimas dos vícios possam alegar a anulabilidade dos negócios, os quais podem se convalidar pelo decurso do tempo e, ainda, ser confirmados pelas vítimas, se entenderem que, apesar de viciados, os negócios lhes trazem benefícios. Imagine-se, então, o cenário em que um implicado buscasse atacar a validade de colaboração premiada sob a alegação de ter sido produzida sob coação. Poderia o delator confirmá-la, se quisesse manter os benefícios nela previstos, ou seria ele impedido de fazê-lo, forçado a ver retomada a persecução criminal contra si?
Essa previsão não encontra amparo na jurisprudência a respeito da colaboração premiada.
Em precedente estabelecido pelo STF, decidiu-se que a colaboração premiada é negócio jurídico processual personalíssimo que “não pode ser impugnado por coautores ou partícipes do colaborador na organização criminosa e nas infrações penais por ela praticadas, ainda que venham a ser expressamente nominados no respectivo instrumento no ‘relato da colaboração e seus possíveis resultados’”.
Esse entendimento já foi revisitado em precedentes pontuais que reconheceram a possibilidade de impugnação por incompetência do juízo de homologação e em caso que questionava o teor do acordo em si, mas não existe ainda lei que autorize expressamente a impugnação por terceiros.
Se a proposta for aprovada, pessoas delatadas em colaborações anteriores poderão questionar a voluntariedade da manifestação de vontade do colaborador caso o acordo tenha sido negociado na prisão, expandindo as possibilidades de anulação e de decretação de ilicitude de elementos de prova obtidos por meio dele.
Essas mudanças merecem reflexão. Embora a manifestação de vontade possa ser viciada em caso de prisão ilegal, a lei já estabelece que a voluntariedade do acordo deve ser analisada de forma mais cuidadosa em caso de restrição cautelar. Impedir pessoas que se encontrem presas de firmar acordo de colaboração não apenas retira a possibilidade de usarem esse instrumento para a própria defesa como atrapalha a obtenção de provas importantes para que as autoridades realizem investigações.
* Publicado pelo JOTA em 4.7.2024.