Publicações

Inconstitucionalidade da coleta obrigatória de DNA de condenados para inclusão em banco de dados

04 de setembro de 2025

Maria Paes Barreto de Araujo

No último dia 7 de agosto, o plenário do Supremo Tribunal Federal iniciou o julgamento do Recurso Extraordinário 973.837, sob relatoria do ministro Gilmar Mendes, com repercussão geral reconhecida, para tratar da constitucionalidade da coleta obrigatória de DNA de condenados por crimes violentos para armazenamento no Banco Nacional de Perfis Genéticos, conforme previsto no artigo 9º-A da Lei de Execução Penal (LEP), com redação dada pela Lei 12.654/12.

No caso que originalmente levou à interposição desse recurso, o Ministério Público de Minas Gerais havia requerido, em primeiro grau, a coleta de DNA para identificação do perfil genético de condenado a pena de 24 anos e cinco meses de reclusão pela prática dos crimes de sequestro e cárcere privado, atentado violento ao pudor (atualmente revogado), corrupção de menores, maus tratos e tortura. Indeferida a coleta de material com base na violação da garantia da não autoincriminação, o órgão ministerial obteve, em segundo grau, decisão que revia a negativa anterior, autorizando a coleta de DNA, sob o argumento de não haver “violação ao princípio da vedação à autoincriminação, uma vez que o art. 9º-A da Lei de Execuções Criminais prevê a identificação genética como decorrência de sentença condenatória transitada em julgado”.

Agora em recurso extraordinário, a Defensoria Pública de Minas Gerais, nomeada para representar o condenado, sustenta que a previsão normativa do artigo 9º-A da LEP viola a dignidade da pessoa humana, o devido processo legal e o direito à não autoincriminação, além de contrariar a vedação constitucional ao estabelecimento de penas perpétuas, na medida em que obriga o condenado a produzir prova contra si mesmo após o cumprimento da pena.

O julgamento foi interrompido após a leitura do relatório e a realização de sustentações orais. Antes da sua retomada, algumas ponderações mostram-se pertinentes para que o STF discuta a incidência do artigo 9º-A da LEP sem violar os direitos e garantias fundamentais da pessoa humana a pretexto de atender a discursos genéricos e populistas de combate à criminalidade, busca da verdade e enfrentamento da impunidade.

Direito ao silêncio

A Lei 12.654/12 entrou em vigor em 28/11/2012 e, entre outros pontos, introduziu o artigo 9-A à LEP, a fim de prever a obrigatoriedade de identificação do perfil genético de condenados pela prática de crimes hediondos ou cometidos com violência de natureza grave contra pessoa, tratando de forma geral da criação de um banco de dados de perfis genéticos, com a finalidade de auxiliar na identificação de suspeitos pela prática de crimes.

Em 2019 — com a Lei 13.964/19, decorrente do chamado “Pacote Anticrime” — a redação do artigo 9º-A foi alterada para determinar que a coleta deve obrigatoriamente ocorrer em casos de condenação por crime doloso praticado com violência grave contra a pessoa, crimes contra a vida e a liberdade sexual e crime sexual praticado contra vulnerável, constituindo falta grave a recusa do condenado em submeter-se ao procedimento de extração de DNA.

A Constituição assegura, em seu artigo 5º, inciso LXIII, o direito do preso permanecer calado. Esse direito é estendido a toda e qualquer pessoa suspeita ou acusada. Negá-lo a alguém só porque está em liberdade seria ilógico, antijurídico e contrário ao nosso ordenamento. Nessa mesma linha, a Convenção Americana de Direitos Humanos garante a toda pessoa acusada, em seu artigo 8º, 2.g, o direito de “não ser obrigada a depor contra si mesma, nem a declarar-se culpada”, possuindo esse princípio status supralegal no ordenamento jurídico brasileiro. O tema é também tratado pela legislação infraconstitucional, na medida em que o artigo 186 do Código de Processo Penal, ao regulamentar o interrogatório do réu, determina que o silêncio “não poderá ser interpretado em prejuízo da defesa”.

 

Assim, no ordenamento jurídico brasileiro o direito ao silêncio é assegurado de maneira absoluta tanto ao preso quanto a qualquer pessoa suspeita ou acusada, sem que o seu exercício possa implicar prejuízo ou consequência negativa.

O tema também deve ser visto em perspectiva mais ampla. Apesar da letra da lei referir somente o direito ao silêncio, este é uma das vertentes de uma garantia maior: a garantia contra a autoincriminação, corolário dos princípios constitucionais da dignidade humana e da ampla defesa, a impedir que alguém seja obrigado, contra a sua vontade, não só a depor contra si próprio como também a submeter-se à coleta de DNA para fins de identificação, transformando-se eventual recusa em uma inaudita falta grave disciplinar.

O próprio STF já reconheceu, além do direito ao silêncio, no bojo da garantia contra autoincriminação, a inconstitucionalidade da condução coercitiva do investigado ou acusado para interrogatório [1], bem como a impossibilidade de obrigá-lo a fornecer padrões vocais [2] ou gráficos [3], participar da reconstituição do crime [4], ou soprar o bafômetro para comprovação de dosagem alcóolica [5].

Diante disso, tem-se que a previsão do artigo 9º-A da LEP viola a garantia contra autoincriminação e, portanto, reclama o reconhecimento de sua inconstitucionalidade como sustentado oralmente pela Defensoria Pública de Minas Gerais e pelos amici curiae Clínica de Direitos Humanos BiotecJus, IBCCrim, Defensoria Pública da União e Defensorias Públicas do Rio de Janeiro e do Paraná, na sessão do dia 7 de agosto, no STF.

Alegações do MP-MG e dos amici curiae

Por outro lado, os argumentos geralmente trazidos para defender a constitucionalidade da coleta obrigatória de material genético, como aqueles que foram sustentados oralmente pelo Ministério Público de Minas Gerais e pelos amici curiae Advocacia Geral da União e Academia Brasileira de Ciências Forenses, na mesma sessão de julgamento, não comportam acolhida. Em resumo, eles buscam afastar a garantia da não autoincriminação afirmando, equivocadamente, que: (1) essa garantia não incidiria no caso do artigo 9º-A da LEP, pois a norma dirige-se a pessoas que já estão condenadas; (2) a submissão do condenado à extração de DNA implicaria somente a sua submissão passiva ao Estado, e não uma conduta ativa de colaboração para a produção de provas contra si; e (3) a lei impõe que deve ser utilizada técnica indolor para a coleta.

No que tange, por sua vez, à inexistência de postura colaborativa ativa do condenado, há quem defenda, como se adiantou, que a extração de DNA implicaria somente um mero tolerar passivo do indivíduo submetido à medida, porque ele simplesmente suportaria que o agente estatal retirasse de seu corpo amostra biológica, sem ter que cooperar ativamente para tanto, o que afastaria a incidência da garantia contra autoincriminação. Não se pode aceitar esse ponto de vista por diferentes motivos:

(1) algumas medidas que implicam mero tolerar passivo do indivíduo a elas submetido, por vezes, mostram-se até mesmo mais invasivas ou vexatórias do que aquelas que exigem um colaborar ativo do imputado para obtenção de elementos probatórios [6]; (2) nem sempre é possível diferenciar claramente se a medida investigativa implica conduta totalmente ativa ou passiva do sujeito, pois há situações nebulosas que geram dúvida na diferenciação entre ação e omissão, como, por exemplo, a submissão do investigado ou acusado ao reconhecimento pela vítima, solicitando a ele que permaneça em determinada posição, levante ou abaixe a cabeça; e (3) mesmo as atividades que exigem mero tolerar passivo do investigado ou acusado acabam necessitando de algum tipo de colaboração ativa de sua parte – por menor que seja – para que seja concluída a obtenção do elemento de prova de seu próprio corpo, como o descolamento inicial do alvo ao local apropriado para a realização da extração de sangue ou a abertura de sua boca para a execução do swab bucal, ambas técnicas empregadas para colheita do DNA.

Finalmente, o status constitucional da garantia contra autoincriminação impede que o indivíduo colabore – seja ativa ou passivamente – na produção de provas contra si, especialmente na hipótese de perícias científicas que afetam a sua integridade física invasivamente, ainda que de maneira indolor. A dor, por óbvio, não pode ser o fator determinante para a incidência ou não da garantida ora discutida, mas sim a impossibilidade de obrigar-se que qualquer cidadão seja rebaixado da categoria de sujeito de direito a mero objeto de prova.

Não se nega, como bem apontado pelo representante do Ministério Público de Minas Gerais em sua sustentação oral na sessão do dia 7 de agosto, que a criação de um banco de dados de perfis genéticos é uma importante ferramenta para a justiça criminal moderna, auxiliando tanto na identificação de culpados pela prática de crimes graves quanto na constatação de inocentes equivocadamente acusados ou condenados.

A coleta de DNA para identificação do perfil genético pode – e deve – ser incentivada para que tenhamos um banco de dados cada vez mais completo e capaz de auxiliar na solução correta e justa de investigações criminais.

O que se questiona, entretanto, é que esse objetivo seja alcançado por meio da submissão forçada do condenado à coleta de material genético, punindo-o com falta grave em caso de recusa. Muito mais alinhado com as garantias fundamentais dos cidadãos brasileiros seria, por exemplo, que se assegurasse ao indivíduo algum benefício na execução da pena caso se submetesse à extração voluntária do referido material ou que as autoridades simplesmente se valessem da coleta de materiais biológicos desintegrados, como, por exemplo, aqueles constantes em fios de cabelo deixados pelo condenado em sua cela e restos de saliva em bitucas de cigarro ou copos descartados, como, inclusive, já decidiu e autorizou o STJ [7] e o STF [8].

Iniciado o importante julgamento dessas questões, resta, agora, aguardar sua retomada, confiando que a Suprema Corte não esvaziará a garantia contra a autoincriminação, tão importante para o nosso Estado Democrático de Direito.

 

 


[1] STF, ADPF 395, Rel. Min. Gilmar Mendes, Tribunal Pleno, Dj. 14.06.18. STF, ADPF 444, Rel. Min. Gilmar Mendes, Tribunal Pleno, DJ. 14.06.18.

[2] STF, HC 83.096, Rel. Min. Ellen Gracie, 2ª Turma, Dj. 18.11.2003.

[3] STF, HC 77.135, Rel. Min. Ilmar Galvão. 1ª Turma, Dj. 8.9.98.

[4] STF, HC 69.026, Rel. Min. Celso de Mello. 1ª Turma, Dj. 10.12.91.

[5] STF, HC 93.916, Rel. Min. Cármen Lúcia. Brasília, 1ª Turma, Dj. 10.6.08.

[6] De acordo com quem defende que somente condutas ativas são protegidas pela garantia contra autoincriminação, mas não condutas passivas do sujeito, tem-se que a pessoa não tem obrigação de soprar o etilômetro por ser considerada conduta ativa. No entanto, pode ser obrigada a se submeter à extração compulsória de sangue para dosagem alcoólica porque, neste caso, não estaria cooperando ativamente para a produção da prova, mas tão somente suportando a ação de um terceiro com este objetivo. Nesse caso, pode-se dizer que a cooperação passiva é mais gravosa e afeta em maior extensão a dignidade da pessoa humana – que tem sua integridade física violada – do que o ato de soprar o etilômetro, considerado conduta ativa e, portanto, protegida pela garantia da não autoincriminação.

[7] STJ, HC 354.068, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, 5ª Turma, Dj. 13.3.18.

[8] STF, RE 603.465, Rel. Min. Alexandre de Moraes. Dj. 11.12.18