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PEC da Blindagem pode abalar cláusulas pétreas e travar investigações

11 de março de 2024

Sônia Cochrane Ráo, Natasha do Lago, Marina Chaves Alves

Nos últimos dias ganhou repercussão a articulação parlamentar para apresentação e aprovação de uma nova PEC, de autoria do deputado Rodrigo Valadares (União Brasil-SE), alcunhada de PEC da Blindagem. A proposta, alegadamente, “visa proteger o mandato de Deputados Federais e Senadores da República contra repetidos abusos cometidos pelo Poder Judiciário que colocam em risco a soberania do voto popular, o exercício parlamentar e a democracia em nosso país”.

A justificativa da proposta deixa transparecer a tensão entre dois dos Poderes da República – o Legislativo e o Judiciário – na medida em que aponta para “ações [do Poder Judiciário] que visam apenas intimidar e amedrontar os detentores de mandatos eletivos”, citando como exemplo “caso acontecido recentemente com o Deputado Federal Carlos Jordy, líder da Oposição na Câmara dos Deputados”. O episódio mencionado diz respeito a buscas e apreensões realizadas nos endereços dos parlamentares e determinadas pelo ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal: Jordy é suspeito de participar de atos antidemocráticos enquanto Alexandre Ramagem é alvo de investigações que apuram possíveis monitoramentos ilegais feitos pela Abin durante sua gestão como diretor-geral da agência.

A alteração constitucional proposta parece singela, mas tem o poder de abalar cláusulas pétreas da Constituição Federal e provocar grandes entraves a investigações levadas a cabo contra parlamentares.

Não é preciso grandes elucubrações teóricas para apontar o óbvio: a proteção conferida aos parlamentares foge ao trivial e à defesa da atividade parlamentar, constituindo verdadeiro entrave para início de investigações e para a efetividade das medidas investigativas.

O tema não é novo. Caso a caso, o STF tem dado interpretação restritiva aos óbices constitucionais impostos à sujeição igualitária de todos os cidadãos às regras penais e processuais penais (ADIn 5.526[1] e AgReg na Ação Cautelar 4.005[2], para citar os mais precedentes mais famosos). E, de fato, não poderia ser outro o entendimento do tribunal guardião da Constituição Federal.

A necessidade de autorização prévia para início das investigações vai facultar aos colegas do investigado o bloqueio da livre apuração policial – mesmo em relação a eventuais crimes comuns praticados por parlamentares – com base em critérios que escapam à técnica. A justiça estaria, assim, refém do jogo político, e os congressistas amparados por uma ampla imunidade, que nada tem a ver com o resguardo de sua função institucional.

Também escapa à lógica que buscas e apreensões tenham de ser autorizadas pelas mesas diretoras das casas legislativas, já que são medidas investigativas inerentemente sigilosas, sob pena de comprometer sua efetividade. A autorização prévia prevista pela PEC, por certo, tem enorme potencial de frustrar a coleta de provas pretendida. Do mesmo modo, o prazo de dez dias para manifestação das casas legislativas – suspenso no recesso judiciário, que perdura por mais de quarenta dias – não condiz com a urgência que a medida excepcional tem na maioria dos casos.

A aprovação da PEC ainda está distante e recentes declarações dos presidentes das casas legislativas apontam que o caminho será complexo. A apresentação de uma PEC exige assinaturas de ao menos um terço dos deputados e senadores. Por ora, números mais recentes divulgados pela imprensa indicam que foram colhidas 99 das necessárias 171 assinaturas na Câmara dos Deputados. Para a aprovação, o caminho é ainda mais desafiador: exige três quintos dos votos dos integrantes das duas casas legislativas.

Ainda que a articulação parlamentar prospere e logre êxito na aprovação da proposta, seu texto certamente será objeto de questionamento nos tribunais pela sua latente inconstitucionalidade. O texto da PEC alça os detentores dos cargos agraciados pela medida à situação de grande privilégio em relação ao cidadão comum, na medida em que pode ser usado como verdadeiro escudo para o cometimento de crimes. Parlamentares desfrutariam de uma prerrogativa pouco palatável: estariam protegidos politicamente para o cometimento de qualquer delito, inclusive aqueles que não guardam relação com sua atividade parlamentar. Em clara afronta ao texto constitucional, nem todos os cidadãos seriam “iguais perante a Lei” (artigo 5º).

A proposta ainda enfrentaria discussões bastante relevantes sobre a ruptura da separação de Poderes, pois condiciona a atuação do Judiciário à aprovação prévia do Legislativo, o que fere a lógica do Estado republicano. Logo no artigo 2º da nossa Constituição Federal está estipulado que os Poderes da União são “independentes e harmônicos entre si”. Mais adiante, a Carta Magna define como imutáveis “a forma federativa de Estado; o voto direto, secreto, universal e periódico; a separação dos Poderes; e os direitos e garantias individuais” (artigo 60, §4º). Impedir que o Judiciário atue livremente claramente corrompe o anseio do constituinte.

Não se ignora que abusos investigativos são comuns, em todas as esferas sociais. O caminho para a mitigação do problema, contudo, passa longe de mudanças legislativas casuísticas. A solução, sempre, é pela via constitucional. Um país tão desigual, com tantas mazelas e privilégios direcionados deve perseguir mudanças que aplaquem as diferenças, não que as majore. Enquanto há projetos corporativistas reverberando para impedir investigações contra a classe política, as medidas investigativas truculentas levadas a cabo em comunidades periféricas parecem não causar incômodo e tampouco debate.

A democracia foi uma dura conquista para os brasileiros e sua manutenção deve ser alvo de vigília constante. A afronta a princípios constitucionais tão caros não pode ser tolerada.


[1] Proposta por partidos políticos contra a imposição de medidas cautelares em desfavor parlamentares. Na ocasião, a maioria do Pleno do STF entendeu que as medidas contra os congressistas exigiriam aval das casas legislativas somente quando inviabilizassem, direta ou indiretamente, o exercício do mandato.

[2] No contexto da Lava Jato, a Câmara judicializou a questão alegando nulidade de medidas cautelares contra parlamentares e determinadas pelo STF por não contarem com autorização da Mesa Diretora.  O Pleno do STF, à unanimidade, acabou por validar a busca e apreensão no gabinete de deputado federal sob o argumento de “não haver determinação constitucional nesse sentido”, ponderando, ainda, que “a prévia autorização poderia, no caso, comprometer a eficácia da medida cautelar pela especial circunstância de o Presidente da Câmara, à época [Eduardo Cunha], estar ele próprio sendo investigado perante a Suprema Corte”.

 

* Publicado pelo JOTA em 11.3.2024