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Criminalização da adolescência: por que mesmo?

12 de janeiro de 2021

Sônia Cochrane Ráo

Em tempos de satanização do direito de defesa, aumento do punitivismo, estreitamento das prerrogativas profissionais, são muitos os temas que assombram os que, no exercício da advocacia criminal, lutam pela liberdade: a eternização das prisões provisórias, o cumprimento de pena antes do
trânsito em julgado, as condenações criminais baseadas em indícios, presunções, e duvidosas – para dizer o menos – delações.
Tudo isso ao argumento, propagado de forma monotemática e acrítica pela mídia nacional, de que vale tudo para combater a impunidade.
Certos – porque a realidade dos números comprova – de que a diminuição da criminalidade passa pela ressocialização dos presos, com a humanização das condições carcerárias e a assistência ao egresso, assistimos hoje à sociedade brasileira saindo às ruas para clamar por mais prisões, indiferente
à verdadeira tragédia que o encarceramento em massa representa.
Causa perplexidade e indignação, nesse contexto, a possibilidade de redução da maioridade penal, atualmente anunciada como uma das soluções para o cenário de violência que tem imprimido tanta insegurança na vida dos brasileiros.
A aventada antecipação da imputabilidade penal reflete, na verdade, o perigo da apropriação do punitivismo penal pela classe política, sem o necessário aprofundamento sobre as causas e consequências da criminalização.
Essa proposta legislativa, dentre tantos outros defeitos de caráter sociológico, é absolutamente inútil do ponto de vista da redução dos índices de criminalidade. Afinal, o sistema prisional brasileiro, longe de reeducar, brutaliza, desumaniza. Bem por isso, aliás, a criminalidade mais violenta é normalmente composta por reincidentes. A extensão desse sistema violador de direitos aos menores de 18 anos só contribuiria para o aprofundamento da situação caótica observada nas prisões brasileiras.
Não bastasse sua nítida inadequação como fator de diminuição da violência, a antecipação da responsabilidade penal esvaziaria de sentido as proteções do Estatuto da Criança e do Adolescente aos jovens de 16 a 18 anos. Ou 14 como sustentam alguns. Com isso, vítimas nessa faixa etária de uma série de condutas tipificadas com o especial intuito de proteger o menor de idade deixariam de encontrar amparo nas disposições do Estatuto. A proposta, assim, se volta exclusivamente para o papel do adolescente enquanto autor de um delito, ignorando sua tão mais frequente condição de vítima.
No plano internacional, a maioridade penal é difundida como chave para se reconhecer que o cometimento de crimes por adolescentes indica a carência de acesso a direitos fundamentais. Não por acaso, a proposta de redução da imputabilidade penal vem sendo acompanhada da valorização do Ensino Fundamental e Médio a distância, escancarando, com isso, um projeto de cerceamento das múltiplas esferas de direitos da infância.
O movimento reducionista, assim, vai na contramão da abordagem global do tema. Merece destaque a experiência da Espanha, que, após reduzir a imputabilidade penal, recuou e voltou a fixá-la em 18 anos, em face da completa falência da medida em promover alterações significativas nos índices
de criminalidade do país.
A redução da maioridade penal, portanto, revela-se não apenas insubsistente em seus fundamentos, como também atentatória às múltiplas garantias de direitos da juventude, numa trágica proposta de criminalização da adolescência que reflete um projeto fundado, em essência, na restrição progressiva da mais ampla gama de direitos fundamentais.
Desvia-se o foco das medidas que de fato poderiam frear a reiteração criminosa, como investimentos em educação, cultura, lazer nas periferias e melhoria do sistema carcerário, para impor aos mais jovens tratamento aviltante, cruel e invariavelmente ineficaz.

 

* Publicado pela AASP no Boletim n.º 3.076, de 2019.