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17 de janeiro de 2023
A edição da Lei nº 14.133/2021, que passou a regular os crimes licitatórios nos artigos 337-E a 337-P do Código Penal em substituição à Lei nº 8.666/1993, tem provocado debates relevantes nos tribunais. Um exemplo é o recente acórdão proferido pela 4ª Câmara de Direito Criminal do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, que, à unanimidade, negou provimento a um recurso interposto pelo Ministério Público contra decisão que rejeitou denúncia.
O caso tinha como pano de fundo a contratação direta de serviços advocatícios, por uma universidade pública paulista, para o exercício de sua defesa em ação popular que versava sobre a construção de um novo campus.
O Ministério Público buscava o recebimento de denúncia em face dos então dirigentes da universidade, da assessora jurídica interna da instituição — que emitira um parecer favorável à contratação — e, enfim, do advogado contratado em regime de inexigibilidade de licitação. A alegação, com base na Lei nº 8.666/ 1993, vigente à época, era de que a contratação do defensor teria ocorrido “fora das hipóteses previstas em lei e deixa[do] de observar as formalidades pertinentes à dispensa ou à inexigibilidade“. Tarsila Tojal, sócia do escritório Ráo & Lago Advogados, atuou na defesa do então pró-reitor da universidade, enquanto Caio Yamaguchi Ferreira e Anderson Lopes, do Lopes & Ferreira Advogados, atuaram na do reitor da instituição.
No entender do órgão ministerial, resumidamente, a acusação se justificaria (1) pelo suposto “valor exorbitante” dos honorários acordados, de R$ 63 mil (“mais do que o quíntuplo do valor indicado na tabela” da OAB), sem o preenchimento da formalidade de justificativa de preço; (2) pela pretensa falta de singularidade da causa, que abordaria “questões corriqueiras de Direito Processual Civil e Direito Administrativo“; e (3) pela alegada ausência de notória especialização do causídico contratado, qualificado como um “clínico geral” pela promotoria, por atuar em diversos ramos do Direito.
Ao negar provimento ao recurso ministerial, a 4ª Câmara de Direito Criminal do TJ-SP levantou muitos pontos de atenção sobre o crime de “contratação direta ilegal”, hoje tipificado no artigo 337-E do Código Penal (antes constante do artigo 89 da Lei nº 8.666/1993) [1]. E é isso que torna o acórdão paradigmático.
O primeiro deles é o seguinte: a conduta antes criminalizada pelo artigo 89 da Lei nº 8.666/1993 não coincide completamente com aquela atualmente prevista no artigo 337-E do Código Penal.
Enquanto a antiga norma punia o ato de “dispensar ou inexigir licitação fora das hipóteses previstas em lei, ou deixar de observar as formalidades pertinentes à dispensa ou à inexigibilidade“, a atual refere-se ao de “admitir, possibilitar ou dar causa à contratação direta fora das hipóteses previstas em lei“.
Apesar de as condutas admitir, possibilitar ou dar causa à contratação direta ilegal compreenderem a primeira parte do artigo 89 da Lei nº 8.666/1993, a nova redação abandonou por completo a formulação de “deixar de observar as formalidades pertinentes à dispensa ou à inexigibilidade“.
Como esclareceu o acórdão, em outras palavras, houve abolitio criminis em relação a essa conduta específica, de modo que uma suposta ausência formal de “justificativa do preço” para a contratação do advogado, ainda que fosse verdadeira, não mais configuraria crime.
Aliás, o próprio Ministério Público do Estado de São Paulo já havia se manifestado nesse sentido em seu Boletim Criminal Comentado nº 133, de abril de 2021. Na publicação, que não está mais disponível ao público, dizia-se que a Lei nº 14.133/2021 “claramente se desprende de formalismos que não comprometam o interesse público, não fazendo qualquer sentido um tipo penal punindo a simples inobservância de solenidades” [2]. O acórdão em destaque afasta quaisquer dúvidas sobre esse aspecto.
Em seguida, a Câmara julgadora entendeu que dois pressupostos para a configuração do crime não haviam sido indicados pela denúncia: a intenção específica dos agentes de causar dano ao erário e o efetivo prejuízo à administração pública. Apesar desses elementos não constarem expressamente da redação contida no artigo 337-E do Código Penal (nem do dispositivo da Lei nº 8.666/1993 que o antecedeu), são tidos como imprescindíveis, pelos tribunais, para a configuração do tipo penal em questão, em atenção ao caráter de ultima ratio do direito penal.
Como consta no acórdão, esse entendimento é tão pacífico que foi objeto do Enunciado nº 1 da Edição nº 134 do repositório de jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça — que segue aplicável à Lei n.º 14.133/2021. O Supremo Tribunal Federal, por sua vez, também já se manifestou sobre “o prejuízo ao erário e a finalidade específica de favorecimento indevido como necessários à adequação típica” do crime de contratação direta [3].
Mais adiante, o voto condutor afastou qualquer improbidade na conduta dos acusados e, com isso, trouxe contribuições para o exame da legalidade dos procedimentos de contratação direta.
As conclusões são pertinentes, inclusive, para as autoridades administrativas que venham a avaliar casos dessa natureza.
O artigo 74, inciso III, alínea “e”, da Lei nº 14.133/2021 retrata como inexigível a licitação quando relacionada à contratação de determinados serviços técnicos especializados “de natureza predominantemente intelectual com profissionais ou empresas de notória especialização“, entre os quais o “patrocínio ou defesa de causas judiciais ou administrativas“.
A eventual terceirização de advogados pelo poder público, assim, é legítima e pode decorrer de uma confluência de fatores. Apesar de a Nova Lei de Licitações não mais exigir a “natureza singular” do serviço prestado, como fazia a lei anterior, as circunstâncias do caso concreto devem ser discriminadas pelo gestor público ao proceder com a contratação direta.
Aqui, o acórdão levou em consideração (1) o prazo exíguo para a universidade apresentar sua contestação na ação popular; (2) a acelerada dinâmica de trabalho das duas únicas assessoras jurídicas da universidade, que não possuíam condições de tempo, conhecimento específico nem experiência para assumir aquele tipo de demanda; e (3) o valor discutido no processo, da monta de R$ 7,5 milhões.
De fato, a decisão pela contratação de advogados externos não precisa depender exclusivamente da complexidade da matéria discutida. Ela é recomendada sempre que a atuação em uma causa possa criar riscos econômicos à instituição ou comprometer as atividades rotineiras do seu corpo jurídico interno.
Por sua vez, a escolha do melhor profissional não diz respeito, necessariamente, àquele mais afamado ou com mais publicações. O parágrafo 3º do artigo 74 da Nova Lei de Licitações associa o critério da “notória especialização” ao profissional ou à empresa “cujo conceito no campo de sua especialidade, decorrente de desempenho anterior, estudos, experiência, publicações, organização, aparelhamento, equipe técnica ou outros requisitos relacionados com suas atividades, permita inferir que o seu trabalho é essencial e reconhecidamente adequado à plena satisfação do objeto do contrato“. A nova lei não mais utiliza a expressão “indiscutivelmente o mais adequado“, como fazia o artigo 25, § 1º, da Lei nº 8.666/1993, que limitava de forma demasiadamente vaga as hipóteses de inexigibilidade de licitação.
No acórdão, o colegiado confirmou a notória especialização do advogado com base em alguns critérios objetivos: (1) o currículo, que retratava um “profissional com vasta experiência em diversos ramos do direito“; (2) o tempo de atuação, aferido pelo seu número de inscrição nos quadros da OAB-SP; (3) a realização de pós-graduação, curso de extensão e atualização; e (4) o fato de já ter prestado serviços a grandes empresas.
Ainda, em relação aos honorários propostos, é evidente que eventuais valores exorbitantes acenderiam um alerta vermelho a respeito da idoneidade da contratação. No entanto, deve-se ter cautela para que a expressão “valor exorbitante” não seja utilizada como um mero recurso retórico para formular acusações descabidas, como foi o caso.
Por lei, não há como exigir do profissional que deprecie demasiadamente o valor de seus serviços como estratégia para angariar clientela, porque isso poderia se reverter na desvalorização da própria advocacia. Enquanto o artigo 5º do Código de Ética e Disciplina da OAB determina que “o exercício da advocacia é incompatível com qualquer procedimento de mercantilização”, seu artigo 7º proíbe “o oferecimento de serviços profissionais que impliquem, direta ou indiretamente, inculcação ou captação de clientela“. A seu turno, o artigo 34, inciso IV, do Estatuto da OAB, prevê sanção disciplinar ao advogado que “angariar ou captar causas, com ou sem a intervenção de terceiros“. Esses dispositivos indicam, inclusive, a incompatibilidade da advocacia com o procedimento licitatório, consubstanciado justamente na competição entre concorrentes para a captação de clientela.
Conforme o artigo 36 do Código de Ética e Disciplina da OAB, os valores a título de honorários podem flutuar de acordo com “I – a relevância, o vulto, a complexidade e a dificuldade das questões versadas; II – o trabalho e o tempo necessários; III – a possibilidade de ficar o advogado impedido de intervir em outros casos, ou de se desavir com outros clientes ou terceiros; IV – o valor da causa, a condição econômica do cliente e o proveito para ele resultante do serviço profissional; V – o caráter da intervenção, conforme se trate de serviço a cliente avulso, habitual ou permanente; VI – o lugar da prestação dos serviços, fora ou não do domicílio do advogado; VII – a competência e o renome do profissional; VIII – a praxe do foro sobre trabalhos análogos“.
Nesse sentido, a 4ª Câmara de Direito Criminal do TJ-SP refutou o argumento do Ministério Público de que a proposta do defensor deveria respeitar a Tabela de Honorários Advocatícios da OAB [4], que estipula um piso mínimo a ser respeitado pelos profissionais, abaixo do qual haveria o aviltamento da advocacia. O montante de R$ 63 mil, aceito pela universidade, nada tinha de desproporcional. Pelo contrário, havia levado em conta critérios absolutamente legítimos, como “o valor envolvido na causa, R$ 7.500.000,00 (sete milhões e quinhentos mil reais), o tempo exíguo entre a contratação e a defesa a ser apresentada, a complexidade da causa e que o valor era referente à atuação global na causa, até́ seu trânsito em julgado“, além do “quilate” do próprio advogado.
Por fim, vale sublinhar que, somada às questões acima, a contratação direta era amparada por parecer emitido pela assessoria jurídica da universidade, circunstância que nem precisou ser melhor examinada pelo tribunal.
A Nova Lei de Licitações impõe ao gestor público o dever de se informar sobre a regularidade da contratação direta pretendida, instruindo o respectivo processo com “parecer jurídico e pareceres técnicos, se for o caso, que demonstrem o atendimento dos requisitos exigidos” (artigo 72, III). Os advogados públicos lhe são uma fonte competente e confiável para o cumprimento desse requisito, de modo que, a princípio, não é adequada a responsabilização penal do gestor público que apenas segue as recomendações de parecer emitido por tais profissionais.
Sobretudo quando a autoridade pública não possuir formação jurídica ou expertise em matéria licitatória, não lhe será exigível esquadrinhar o mérito do parecer, mas apenas verificar sua plausibilidade e a inexistência de graves erros formais. Como afirma Alaor Leite, “apenas diante de informações manifestamente incorretas ou quando a informação não for conclusiva no sentido da licitude ou ilicitude é que o gestor público não deve tomá-la como sua base de atuação” [5].
Por sua vez, não é possível responsabilizar criminalmente o procurador jurídico tão somente por emitir parecer opinativo favorável à dispensa ou inexigibilidade de contratação, ainda que seu mérito, do ponto de vista técnico, venha a ser questionado em um segundo momento. De um lado, sua inviolabilidade profissional é resguardada pelo artigo 133 da Constituição Federal e pelo artigo 2º, § 3º, do Estatuto da OAB. De outro, como já entendeu a Sexta Turma do STJ no julgamento do Habeas Corpus nº 464.498/SP, mesmo um parecer alegadamente “genérico” não preencheria “a exigência jurisprudencial de individualizar uma preordenação prévia, um desvio de finalidade” [6].
Como bem decidiu o Tribunal de Justiça de São Paulo no caso em análise, qualquer alegação de que o gestor público, o parecerista e o profissional contratado agiram mancomunados para a prática do suposto crime licitatório haveria de ser minimamente demonstrada pelo órgão acusatório, sob pena de faltar justa causa à instauração da ação penal.
Com o referido julgamento, o tribunal deu um passo importante para a racionalização do manejo da legislação penal licitatória.
[1] O novo dispositivo foi objeto de exame por Tarsila Fonseca Tojal na segunda edição da obra Código Penal Comentado, da Editora RT-Thomson Reuters. TOJAL, Tarsila Fonseca. Capítulo II-B – Dos Crimes em Licitações e Contratos Administrativos. In: SOUZA, Luciano Anderson de (coord.). Código Penal Comentado. São Paulo, RT — Thomson Reuters Brasil, 2022, pp. 1153-1173.
[2] MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO, Boletim Criminal Comentado, São Paulo, nº 133, abr. 2021, p. 5. Disponível em: http://www.mpsp.mp.br/portal/page/portal/Criminal/Boletim_Semanal/Boletim%20CAOCRIM%20133.pdf. Em 15 nov. 2022, quando da elaboração deste artigo, o acesso ao documento pelo link não era mais franqueado.
[3] STF, Inq. n.º 2.616, rel. min. Dias Toffoli, Tribunal Pleno, julgado em 29/5/2014.
[4] A tabela de honorários advocatícios correspondente ao ano de 2022 encontra-se disponível em https://www.oabsp.org.br/servicos/tabelas/tabela-de-honorarios. Acesso em 18 nov. 2022.
[5] LEITE, Alaor. Dolo e o crime de dispensa ou inexigência ilegal de licitação (art. 89 da Lei 8.666/1993): interpretação restritiva do tipo penal, responsabilidade penal do gestor público e a relevância jurídica da opinião técnica da procuradoria do município (STF, Inq 2.482). Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, v. 21, nº 104, pp. 13-30, set./out. 2013, p. 26.
[6] STJ, HC 464.498/SP, rel. min. Sebastião Reis Júnior, 6ª Turma, julgado em 17/9/2019, DJe 23/9/2019.