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A advocacia com Márcio Thomaz Bastos
Sônia Cochrane Ráo

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São tempos difíceis para a advocacia criminal. Punitivismo exagerado, criminalização em alta, prerrogativas desprezadas, direito de defesa satanizado. Acostumados a ver o povo indo às ruas no mundo inteiro para lutar por todas as formas de liberdade, assistimos hoje no nosso país a manifestações populares que clamam pela prisão.

Prova sólida, acima de qualquer dúvida? Não precisa. Prisão só depois de uma condenação definitiva? Desnecessário. Presunção de inocência? Sinônimo de impunidade. Direito de defesa? Coisa de quem é a favor da corrupção. E tudo isso sem o Márcio Thomaz Bastos.

Entre um susto e outro, é muito frequente ouvir dos colegas: e se o Márcio estivesse aqui? O que você acha que o MTB diria? Como lidaria com a atual tendência de criminalização da advocacia? Com o fim do direito de não produzir provas contra si mesmo, dentre tantos outros?  Será que ele advogaria nas delações premiadas? As respostas variam, mas todas revelam a profunda falta que ele faz.

Além de um advogado espetacular, Márcio tinha um dom muito especial: seu efeito calmante. Não importava o tamanho do problema, a intensidade da aflição. Conversar com ele mudava tudo. Alguma coisa nele sempre transmitia tranquilidade.

Para os que, como eu, tiveram a sorte de trabalhar ou conviver com essa pessoa encantadora, impossível não associar sua trajetória de vida à luta intransigente e apaixonada pelo direito de defesa. Idealizador, fundador e patrocinador do IDDD (Instituto de Defesa do Direito de Defesa), Thomaz Bastos considerava essa garantia constitucional absolutamente sagrada.

À frente do Ministério da Justiça, dizia que estava ministro, mas era advogado. Uma vez me contou que seu grande amigo, o saudoso criminalista Evaristo de Moraes, durante uma defesa no Tribunal do Júri, estendeu sua beca envolvendo o réu, seu cliente. Adorou o simbolismo do gesto.

Atuar no Tribunal Popular era uma das grandes paixões do Márcio, que chegou a advogar em mais de 700 julgamentos. Contava que, em certa ocasião, presenciou insólito — mas, de certa maneira sábio — diálogo entre um advogado e seu cliente, que, inconformado com uma condenação a vinte anos de prisão, ouviu de seu defensor: “na verdade podemos considerar que foram dez anos, já que metade do tempo você estará dormindo, nem saberá onde está”.

Dizia que tinha um pesadelo recorrente, desde o início de sua carreira: sonhava que corria, vestido em sua beca, em direção ao antigo prédio onde eram realizados os julgamentos em casos de júri, na praça João Mendes, no centro de São Paulo. Chegava agoniado e encontrava as portas fechadas. Batia e era atendido por um funcionário, que o informava que o julgamento já tinha acabado. Acordava.

É claro que isso nunca aconteceu. Márcio era extremamente disciplinado e, nos dias que antecediam as defesas perante a Corte Popular, se preparava intensamente. Aos que diziam que, com sua experiência e inegável talento, tanto estudo e concentração eram desnecessários, retrucava citando o adorável Waldir Troncoso Perez — verdadeiro fenômeno das tribunas, orador inigualável e também um querido amigo do MTB: “quando eu deixar de ficar nervoso antes de entrar no Tribunal do Júri para realizar uma defesa, saberei que chegou a hora de aposentar!”.

Fomos sócios de 1990 a 2003. Trabalhamos em parceria em vários casos até sua morte. A advocacia com o Márcio era muito intensa, muito interessante, sofrida e divertida.

Sem ele, há de ser digna.

Celebrando a vida desse advogado tão especial, destaco sua coragem, seu entusiasmo e seu compromisso com a democracia, com a liberdade, com o Estado de Direito.

 

*Republicado pelo ConJur em 20.8.2021.