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Fundos e instituições financeiras: uma questão de identidade
Natasha do Lago , Eduardo Salomão Neto

 

Sou Justiniano, e Cesar fui então;
que, por querer do Deus que eu acalento,
o supérfluo das leis tirei, e o vão.
(Divina Comédia, Paraíso, Canto VI)

 

A divisão entre mercado financeiro e de capitais foi sempre clara. No primeiro, opera-se por intermédio de instituições financeiras reguladas que coletam fundos para repassar com discricionariedade, ou usam sua rede para veicular títulos de renda fixa. No mercado de capitais, por outro lado, são transacionados os chamados valores mobiliários, definidos em lei.

Os referidos mercados não são estanques, pois bancos, especialmente os de investimentos, participam ativamente do mercado de capitais. E instituições do mercado de capitais, como as corretoras e distribuidoras, podem se sujeitar a regulação do Banco Central do Brasil.

A diferença foi, entretanto, desconsiderada por decisão de 2019 do STJ, cujo voto condutor se fundamentava no fato de que o fundo de investimentos atua no mercado financeiro, na vertente mercado de capitais, inclusive mediante captação e custódia de poupança popular, com subscrição de valor mobiliário. Assim sendo, amolda-se à definição legal de instituição financeira, até mesmo sendo administrado por uma.

No julgado, discutia-se se um fundo de direitos creditórios (FIDC) poderia manter os juros de créditos adquiridos do sistema financeiro, superiores aos limites legais. A decisão, bem intencionada, tentava preservar o acordo entre as partes e evitar o enriquecimento sem causa do devedor, que ocorreria se os juros fossem reduzidos pela circunstância fortuita de mudança do credor.

Mas o fundamento dela é desnecessário e incorreto.

Desnecessário porque os princípios de respeito aos contratos, e de vedação ao enriquecimento sem causa, reforçados aliás pela recente Lei da Liberdade Econômica, já bastariam para manter os juros avençados. Além disso, sequer se pode falar em juros na aquisição de crédito por fundo especializado: a entidade adquire um ativo, e percebe ganho de capital na sua realização, ao obter valor maior do que o de aquisição. Não há na atividade do fundo o “colocar recursos na propriedade de terceiro devedor em troca de direito apenas obrigacional”, que é típico do crédito.

Incorreto também o fundamento, porque a instituição financeira e sua atividade privativa são tratadas na Lei da Reforma Bancária de 1964. Tal lei tinha linguagem imprecisa e ampliativa, típica do movimento militar de 1964 e seu ímpeto de reorganização legislativa. Definia a atividade privativa de instituição financeira como centrada na coleta, intermediação ou aplicação de recursos financeiros próprios ou de terceiros, sem mais acrescentar.

Mas essa regra incidia no defeito da excessiva abrangência. Na letra do seu texto, rara seria a pessoa física ou jurídica que não pudesse ser chamada de instituição financeira, pois afinal todos (ou quase todos) aplicamos recursos em produtos financeiros, ou eventualmente coletamos recursos por empréstimo. De onde ter a jurisprudência, com o passar do tempo, determinado que a coleta e aplicação deveriam ser cumulativas, e feitas com habitualidade e intuito de lucro, sob a forma de mútuo.

O que a jurisprudência faz a jurisprudência muda, se poderia pensar para prestigiar a decisão do STJ. Mas não aqui. Isso porque decidir que fundos são instituições financeiras, revertendo lógica cabal do entendimento anterior, tem o efeito deletério de causar a incidência de normas penais sobre condutas corriqueiras.

A lei penal que trata de crimes contra o sistema financeiro nacional reproduz a definição ampla de instituição financeira da Lei da Reforma Bancária de 1964, incluindo ainda no conceito as instituições responsáveis pela custódia, emissão, distribuição, negociação, intermediação ou administração de valores mobiliários.

Essa escolha legislativa, por si só, já tem justificado a abertura de investigações e mesmo processos penais com base na interpretação equivocada de que fundos de investimento seriam instituições financeiras, o que deve se potencializar com a recente decisão do STJ.

A lei de crimes contra o sistema financeiro nacional pune, por exemplo, o crime de gestão temerária de instituição financeira. A prevalecer a nova definição do STJ, isso poderia levar à responsabilização de gestores e administradores de fundos cuja própria lógica é o investimento de risco, almejando maiores lucros à custa de maiores perdas, com plena ciência dos investidores. Por exemplo, os fundos de investimentos multimercado ou em direitos creditórios não padronizados, que podem ser definidos justamente por seu grau elevado de risco.

A falha dessa linha de pensar e aplicar a lei é que os fundos, ao contrário das instituições financeiras, não estão sujeitos a parâmetro mínimo de segurança para seus investimentos. Ao contrário das instituições financeiras, nada devem a terceiros, seus cotistas são condôminos de um patrimônio comum, cujo destino é aplicado no que os cotistas tenham determinado em regulamento.

Decisões como a comentada contribuem para obscurecer essa realidade e, se aplicadas na esfera criminal, a criar tipos penais sem bem jurídico relevante a proteger. O que leva à violação de direitos e garantias individuais da Constituição Federal, como o direito à liberdade, pessoal e de trabalho.

Assim como Justiniano, imperador bizantino e legislador do século V, pôde subir ao paraíso por fazer regras precisas na medida necessária, podemos descer ao inferno por complicá-las sem razão. A esperança é que esse artigo nos ajude na direção certa, pois Dante Alighieri não estará por aqui para nos reconduzir ao Paraíso.

 

* Publicado pelo JOTA em 21.10.2020 .