Publicações

Mudanças penais da nova Lei de Licitações
Natasha do Lago, Giovanna Tavolaro

Na última quinta-feira (1º/4), foi sancionada a Lei nº 14.133/21 que, além de modernizar as contratações no setor público, alterou o Código Penal para introduzir os artigos 337-E a 337-O, reproduzindo crimes que estavam previstos na antiga Lei de Licitações (8.666/93) e acrescentando novas condutas.

Embora a maior parte da Lei nº 8.666/93 ainda permaneça em vigor por mais dois anos [1], os dispositivos penais da nova lei já estão valendo e se aplicam, por disposição expressa, também aos contratos celebrados com empresa pública, sociedade de economia mista e subsidiárias [2].

Quatro mudanças importantes chamam atenção na reforma do ponto de vista penal.

A primeira delas é com relação ao antigo crime de contratação direta ilegal, agora previsto no artigo 337-E do Código Penal. Até a semana passada, a infração era punida, sob outra nomenclatura, pelo artigo 89 da Lei nº 8.666/93, com pena de três a cinco anos de detenção [3]. Com a alteração, a pena passou a ser de quatro a oito anos de reclusão e se excluiu parágrafo que previa a punição daquele “que, tendo comprovadamente concorrido para a consumação da ilegalidade, beneficiou-se da dispensa ou inexigibilidade ilegal, para celebrar contrato com o poder público”.

A alteração de pena produz o efeito de impedir a celebração do acordo de não persecução penal introduzido pela Lei nº 13.964/19, já que o artigo 28-A do Código de Processo Penal determina que a infração seja punida com pena mínima inferior a quatro anos. Já a exclusão do parágrafo que tratava do beneficiário não exclui, por outro lado, a possibilidade de que ele seja efetivamente punido. O crime, de fato, aplica-se a toda e qualquer pessoa que incorra na conduta de “admitir, possibilitar ou dar causa à contratação direta fora das hipóteses previstas em lei” [4], o que naturalmente inclui o terceiro beneficiado que tenha participado do ato.

A prevalecer o entendimento fixado pelo Superior Tribunal de Justiça com relação ao antigo artigo 89 da Lei nº 8.666/93, precisará haver ainda dolo específico de causar dano ao erário para que o crime ocorra, além da efetiva caracterização do prejuízo [5].

Finalmente, por se tratar de norma penal em branco (isto é, cujo conteúdo precisa ser complementado por outras regras), os dispositivos que preveem as hipóteses de contratação direta deverão ser consultados para delimitar o alcance do tipo [6], o que, em alguns casos, poderá significar a descriminalização de condutas praticadas na vigência da lei anterior [7]. Houve, nesse sentido, pelo menos duas alterações importantes: 1) a elevação do valor máximo para a dispensa de licitação, que passou a ser de R$ 100 mil para obras e serviços de engenharia ou serviços de manutenção de veículos automotores e R$ 50 mil para compras e outros serviços; e 2) a alteração dos critérios para inexigibilidade de licitação na contratação de determinados “serviços técnicos especializados”, que deixaram de ter “natureza singular” e passaram a exigir não apenas “profissionais ou empresas de notória especialização” (como já ocorria na lei anterior), mas também a existência de “natureza predominantemente intelectual”.

A segunda mudança penal importante trazida pela Lei nº 14.133/21 foi a do artigo 337-L do Código Penal, que prevê o crime de fraudar licitação ou contrato dela decorrente, mediante cinco hipóteses: 1) entrega de mercadoria ou prestação de serviços com qualidade ou em quantidade diversas das previstas no edital ou nos instrumentos contratuais; 2) fornecimento, como verdadeira ou perfeita, de mercadoria falsificada, deteriorada, inservível para consumo ou com prazo de validade vencido; 3) entrega de uma mercadoria por outra; 4) alteração da substância, qualidade ou quantidade da mercadoria ou produto fornecido; ou 5) qualquer meio fraudulento que torne injustamente mais onerosa para a Administração a proposta ou execução do contrato.

O artigo substitui o antigo artigo 96 da Lei nº 8.666/93 e aumenta sua pena [8], que antes era de três a seis anos de detenção e passou para quatro a oito anos de reclusão, além de multa — alteração que, tal como ocorre no artigo 337-E, tem o efeito de impedir a celebração do acordo de não persecução penal introduzido pela Lei nº 13.964/19.

Para além da sanção penal, a primeira mudança trazida com a substituição diz respeito à maior amplitude do novo artigo: onde antes se falava em “fraudar licitação instaurada para aquisição ou compra de bens ou mercadorias”, agora se fala apenas em “fraudar licitação”, sem que exista, portanto, delimitação quanto ao escopo do certame.

Uma segunda alteração nesse tipo penal diz respeito à exclusão da hipótese de fraude à licitação apenas em razão da elevação arbitrária dos preços, prevista na lei antiga. A lei nova trocou tal situação pela criminalização da entrega de mercadoria ou prestação de serviços com qualidade ou em quantidade diversas das previstas, mudando o foco para a própria execução do contrato. Com essa mudança, surge uma primeira preocupação: como será, na prática, a análise da inferioridade da qualidade do produto ou do serviço oferecido? Sabendo-se que muitos processos licitatórios envolvem questões técnicas que fogem à compreensão de leigos, a nomeação de peritos fica recomendada sempre que houver necessidade.

A última transformação de relevância nesse artigo, e também a mais sutil, é a inclusão como crimes de fraude à licitação das hipóteses de fornecimento à Administração Pública, como verdadeiras ou perfeitas, de mercadorias inservíveis para consumo ou com prazo de validade vencido. A alteração parece lógica e quiçá desnecessária, uma vez que já parece se incluir na quinta e última possibilidade de fraude prevista pelo tipo penal: a utilização de “qualquer meio fraudulento que torne injustamente mais onerosa para a Administração Pública a proposta ou a execução do contrato”.

Uma terceira alteração importante promovida pela Lei nº 14.133/21 foi a introdução do crime de “omissão grave de dado ou de informação por projetista” no artigo 337-O do Código Penal, punido com multa e seis meses a três anos de reclusão e sem correspondência na lei anterior.

O objetivo do tipo penal é coibir a omissão, modificação ou entrega dolosa, à Administração, de informações relevantes ao processo licitatório que estejam em dissonância com a realidade no que se refere a levantamento cadastral ou condição de contorno [9], o que exclui adaptações que venham a se mostrar necessárias por outras circunstâncias. Se a infração for praticada “com o fim de obter benefício, direto ou indireto, próprio ou de outrem”, a pena conta-se em dobro.

Para que o crime exista, será necessário ainda que essas condutas sejam praticadas “em frustração ao caráter competitivo da licitação ou em detrimento da seleção da proposta mais vantajosa para a Administração Pública”, podendo ocorrer “em contratação para a elaboração de projeto básico, projeto executivo ou anteprojeto, em diálogo competitivo ou em procedimento de manifestação de interesse”.

Outra delimitação importante é com relação ao sujeito ativo que pode praticar a conduta. Embora o tipo penal tenha sido batizado como “omissão grave de dado ou de informação por projetista”, essa restrição não foi reproduzida na descrição do tipo e a utilização do verbo “entregar” abre espaço para a punição de terceiros. Será necessário observar a aplicação do tipo penal pela jurisprudência para entender como a controvérsia será resolvida.

Por fim, como quarta e última alteração relevante, a Lei nº 14.133/21 excluiu o teto previsto para a multa cominada aos crimes dos artigos 337-E a 337-O do Código Penal [10], antes limitada a 5% do valor do contrato licitado ou celebrado com dispensa ou inexigibilidade de licitação. Anteriormente, a Lei 8.666/93 previa, em seu artigo 99, norma especial para cálculo da multa, aplicada em porcentagem sobre o “valor da vantagem efetivamente obtida ou potencialmente auferível pelo agente”. Com a nova lei, passa-se a seguir a norma geral do Código Penal, estipulada em dias-multa [11]. Manteve-se, porém, a ressalva de que o valor da pena não pode ser inferior a “2% do valor do contrato licitado ou celebrado com contratação direta”, já prevista na antiga Lei de Licitações. Assim, fica revogada a norma especial anteriormente vigente, que previa uma forma de cálculo completamente diferente, devendo, por escolha legislativa expressa, submeter-se à metodologia do Código Penal.

O que se vê, enfim, com a reforma dos crimes contra licitações, é uma sistematização a partir da inclusão de tipos no Código Penal e um recrudescimento em termos de repressão: praticamente todos os tipos penais pré-existentes passaram por uma elevação do intervalo de penas e novas condutas foram tipificadas [12], excluindo-se o texto que antes limitava a aplicação da multa nos casos de contratação direta. Resta saber se o endurecimento penal será eficaz para dissuadir eventuais práticas criminosas, como objetivou o legislador, ou se apenas representará um avanço desnecessário sobre práticas que deveriam ser disciplinadas (provavelmente de forma mais efetiva) por outros ramos do Direito.

[1] Nos termos do artigo 193, “revogam-se: I — os artigos 89 a 108 da Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993, na data de publicação desta Lei; II – a Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993, a Lei nº 10.520, de 17 de julho de 2002, e os artigos 1º a 47-A da Lei nº 12.462, de 4 de agosto de 2011, após decorridos 2 (dois) anos da publicação oficial desta Lei.”

[2] “Artigo 185 – Aplicam-se às licitações e aos contratos regidos pela Lei nº 13.303, de 30 de junho de 2016, as disposições do Capítulo II-B do Título XI da Parte Especial do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal).”

[3] “Artigo 89 – Dispensar ou inexigir licitação fora das hipóteses previstas em lei, ou deixar de observar as formalidades pertinentes à dispensa ou à inexigibilidade: (…)”.

[4] Esse tipo de alteração ocorreu também no crime de modificação ou pagamento irregular em contrato administrativo, do artigo 337-H do Código Penal. Antes, o artigo 92 da Lei nº 8.666/93 previa a punição do “contratado que, tendo comprovadamente concorrido para a consumação da ilegalidade, obtém vantagem indevida ou se beneficia, injustamente, das modificações ou prorrogações contratuais”. Tal como no caso do artigo 337-E, no entanto, a redação do caput do artigo 337-H é suficientemente ampla para incluir qualquer pessoa que concorra para a prática do crime, como, aliás, já era possível pela redação do artigo 29 do Código Penal. Na verdade, a exclusão do requisito de que o contratado obtenha vantagem indevida ou benefício apenas amplia o alcance do tipo penal.

[5] Precedente da AP 480/MG , Rel. Min CESAR ASFOR ROCHA, Corte Especial, DJ em 15.6.2012, que vem sendo seguido pelas duas turmas do Superior Tribunal de Justiça (ver HC 588.359/PE, Rel. Min SEBASTIÃO REIS JÚNIOR, Sexta Turma, DJ em 14.9.2020; e AgRg no REsp 1.838.200/MA, Rel. Min REYNALDO SOARES DA FONSECA, Quinta Turma, DJ em 24.8.2020).

[6] Dispostos entre os artigos 74 e 76 da nova lei.

[7] Ver artigo 2º do Código Penal: “Ninguém pode ser punido por fato que lei posterior deixa de considerar crime, cessando em virtude dela a execução e os efeitos penais da sentença condenatória. Parágrafo único – A lei posterior, que de qualquer modo favorecer o agente, aplica-se aos fatos anteriores, ainda que decididos por sentença condenatória transitada em julgado.”

[8] “Artigo 96 – Fraudar, em prejuízo da Fazenda Pública, licitação instaurada para aquisição ou venda de bens ou mercadorias, ou contrato dela decorrente:
I – elevando arbitrariamente os preços;
II – vendendo, como verdadeira ou perfeita, mercadoria falsificada ou deteriorada;
III – entregando uma mercadoria por outra;
IV – alterando substância, qualidade ou quantidade da mercadoria fornecida;
V – tornando, por qualquer modo, injustamente, mais onerosa a proposta ou a execução do contrato:
Pena – detenção, de 3 (três) a 6 (seis) anos, e multa.”

[9] A lei define que “condição de contorno” inclui “as informações e os levantamentos suficientes e necessários para a definição da solução de projeto e dos respectivos preços pelo licitante”, como “sondagens, topografia, estudos de demanda, condições ambientais e demais elementos ambientais impactantes, considerados requisitos mínimos ou obrigatórios em normas técnicas que orientam a elaboração de projetos.”

[10] Embora o dispositivo disponha que “a pena de multa cominada aos crimes previstos neste Capítulo seguirá a metodologia de cálculo prevista neste Código”, a limitação que traz na segunda parte (de que a multa “não poderá ser inferior a 2% (dois por cento) do valor do contrato licitado ou celebrado com contratação direta”) acaba restringindo sua aplicação aos casos em que exista contratação direta, o que não se aplica a todos os crimes em licitações e contratos administrativos.

[11] Ver artigo 49 do Código Penal: “A pena de multa consiste no pagamento ao fundo penitenciário da quantia fixada na sentença e calculada em dias-multa (…).”

[12] Isso apenas não ocorreu com relação aos atuais artigos 337-J e 337-n.

* Artigo publicado pelo Conjur em 5.4.2021.